Psicanálise Mítica do Destino Português

“As «Histórias de Portugal», todas, se exceptuarmos o limitado mas radical e grandioso trabalho de Herculano, são modelos de “robinsonadas”: contam as aventuras celestes de um herói isolado num universo previamente deserto. Tudo se passa como se não tivéssemos interlocutor.”

"Os Lusíadas recebem uma luz espectral e fulgurante quando lidos no contexto de uma grandeza que subterraneamente se sabe uma ficção ou, se se prefere, de uma ficção que se sabe desmedida mas precisa de ser clamada à face do mundo menos para que a oiçam do que para acreditar em si mesma."

Da nossa intrínseca e gloriosa ficção Os Lusíadas são a ficção. Da nossa sonâmbula e trágica grandeza de um dia de cinquenta anos, ferida e corroída pela morte próxima, o poema é o eco sumptuoso e triste. Já se viu um poema épico assim tão triste, tão heroicamente triste ou tristemente heróico, simultaneamente sinfonia e requiem? O livro singular é o lençol de púrpura dos nossos deuses (heróis) mortos.”

“Sessenta anos em contacto directo (e na economia invisível da história porventura frutuoso) com o interlocutor imediato de um viver que foi e é sempre múltiplo diálogo mas que nós teimamos em contemplar como solilóquio, permitiram, enfim, que nos descobríssemos às avessas, que sentíssemos na carne que éramos (também) um povo naturalmente destinado à subalternidade.”

"Tornou-se então claro que a consciência nacional (nos que a podiam ter) que a nossa razão de ser, a raiz de toda a esperança, era o termos sido. E dessa ex-vida são Os Lusíadas a prova do fogo."

“O viver nacional (…) orienta-se nessa época para um futuro de antemão utópico pela mediação primordial, obsessiva, do passado. Descontentes com o presente, mortos como existência nacional imediata, nós começámos a sonhar simultaneamente o futuro e o passado

“A tentativa de recriar uma alma à século xvi não foi longe: um excesso de lógica nas suas ambições, legítimas mas incómodas, ministraria ao mundo europeu a prova absoluta da nossa absoluta subalternidade.”

”(…) voltámos à costumada e agora voluntária e irrealística pose de nos considerarmos, por provincianice incurável ou despeito infantil, uma espécie de nação idílica sem igual. O fim do século xIx, por reacção ao criticismo devastador e impotente da década de Setenta, mas também como resposta à agressão do monstro civilizado (Inglaterra) verá eclodir a mais nefasta flor do amor pátrio, a do misticismo nacionalista, fuga estelar a um encontro com a nossa autêntica realidade, (…) O Saudosismo será, mais tarde, a tradução poético- ideológica desse nacionalismo místico (…)”

“Concretamente, o salazarismo foi o preço forte que uma nação agrária desfasada do sistema ocidental a que pertence teve de pagar para ascender ao nível de nação em vias de industrialização. Desse processo e como coroamento dele, constituirá a emigração em massa dos nossos aldeões a simbólica e dura expressão final.”^salazarismo

“Houve no salazarismo concreto (e na sua ideologia expressa nos «Discursos do universitário assaz racionalista que foi Salazar») uma tentativa para adaptar o país à sua natural e evidente modéstia. Todavia a glosa do relativo sucesso dessa tentativa é que não foi nada modesta e breve redundou na fabricação sistemática e cara de uma lusitanidade exemplar, cobrindo o presente e o passado escolhido em função da sua mitologia arcaica e reaccionária que aos poucos substituiu a imagem mais ou menos adaptada ao País real dos começos do Estado Novo por uma ficção ideológica, sociológica e cultural mais irrealista ainda que a proposta pela ideologia republicana, por ser ficção oficial, imagem sem controlo nem contradição possível de um país sem problemas, oásis da paz, exemplo das nações, arquétipo da solução ideal que conciliava o capital e o trabalho, a ordem e a autoridade com um desenvolvimento harmonioso da sociedade.”

“Não se percebeu nada do espírito do antigo regime e do seu êxito histórico quando não se vê até que ponto ele foi a mais grandiosa e sistemática exploração do fervor nacionalista de um povo que precisa dele como de pão para a boca em virtude da distância objectiva que separa a sua mitologia da antiga nação gloriosa da sua diminuida realidade presente.

“É sob o seu império ou na sua movência que se cria em relação à clássica imagem de Portugal como país cristão, harmonioso, paternal e salazarista, suave, guarda-avançada da civilização ocidental antimarxista, uma outra-imagem que não é exactamente uma contra-imagem, mas uma complexa distorção desse protótipo que nalguns aspectos se apresenta como o pólo oposto dela (sobretudo pela «ocultação» do carácter repressivo de índole cristã). Na realidade, a oposição ideológico-cultural ao antigo regime não se apresentou nunca (…)”

“Mas marcas duradouras na alma de quem «teve» quinhentos anos de Império nada, ou só a ficção encarecente que nOs Lusíadas ecoa, não como mudadora da sua alma, mas como simples nomenclatura extasiada de terras e lugares que na verdade, salvo Goa, nunca habitámos como senhores delas.”

Chorámos na praça pública, não por riquezas perdidas que eram literalmente fictícias, mas por nos darmos conta sem remissão que não pesávamos nada na balança da Europa civilizada e imperialista.”

“Nenhum povo e mais a mais um povo de tantos séculos de vida comum e tão prodigioso destino pode viver sem uma imagem ideal de si mesmo. Mas nós temos vivido sobretudo em função de uma imagem irrealista, o que não é a mesma coisa. (…) Chegou a hora de fugir para dentro de casa, de nos barricarmos dentro dela, de construir com constância o país habitável de todos, sem esperar de um eterno lá fora ou lá-longe a solução que como no apólogo célebre está enterrada no nosso exíguo quintal.”

“udo parecia dispor-se para enfim, após um longo período de convívio hipertrofiado e mistificado connosco mesmos surgisse uma época de implacável e viril confronto com a nossa realidade nacional de povo empobrecido, atrasado social e economicamente, com uma percentagem de analfabetismo única na Europa, com quase um terço da sua população obrigada a emigrar, imagem capaz de suscitar um sobressalto colectivo para Lhe atenuar os traços mais intoleráveis. Mas o que sucedeu, o que tem tendência a acentuar-se é a reconstituição em moldes análogos da imagem «camoniana» de nós mesmos, do benfiquismo ingénuo mas nefasto com que nos contemplamos e nos descrevemos nos indestrutíveis discursos oficiais e, quando não basta, com a promoção eufórica e cara da nossa imagem exterior que em seguida reimportamos como se fosse de facto a dos outros sobre nós.”

“A distorção consistiu em tentar impor uma nova imagem de Portugal, logo após o 25 de Abril na aparência oposta à do antigo Regime, mas cuja estrutura e função eram exactamente as mesmas: instalar o País no lisonjeiro papel de país revolucionário exemplar, dotado de Forças Armadas essencialmente democráticas , considerando os cinquenta anos precedentes como um parêntesis lamentável, uma conta errada que se apagava no quadro histórico para recomeçar uma gesta perpétua na qual o salazarismo tinha sido uma nódoa indelével.”

“A verdade é que a nova classe política - por razões aliás explicáveis - descolonizou exactamente nos mesmos termos em que o antigo regime levara a cabo a sua cruzada colonialista.”

”(…) mas não encontrou ainda aquele ponto de apoio que sem precisar de ter o odioso perfil de um nacionalismo chauvinista, paranóico e irrealista, corresponda ao sentimento de natural fruição da autonomia e da dignidade nacionais.”

Camões no Presente

“O evocado, quando se trata de Camões, há muito constitui, por direito próprio, a referência unânime do que pode chamar-se, com toda a ambiguidade, o espírito nacional.”

“Celebrando-o, a nós, como entidade colectiva, nos celebramos.”

“O que convém é saber como Camões e a sua obra, em particular Os Lusíadas, não são uma realidade intemporal e de significação unívoca. Deslocá-los, arbitrariamente, da sua significação própria, enquanto expressão exemplar de um momento da nossa existência histórica e da aventura mais vasta da expansão do Ocidente, para a falsa eternidade de um mito moral, histórico e ideológico cujas bases continuariam intocáveis, é celebrá-lo às avessas, querer que o dividido presente nosso tenha a claridade sublimada de um passado irrevogável no seu ser e nas suas coordenadas espirituais. (…) Na sua literalidade anacrónica, a ideologia do sumo cantor da Fé e do Império mais propícia lhe pareceria a uma apropriação por parte da sonambúlica classe dirigente da Monarquia.”

”(…), através do Épico e sem pensar traí-lo, buscávam menos uma caução que uma ilustração para uma nova concepção dos interesses reais do povo português e da espécie nova de amor pátrio que lhe correspondia.”

”(…) o Poema que assim se desloca do lugar e do tempo onde cobrou sentido, presta-se mais, com efeito, para ditirambos e slogans de Cruzada Imperial, que para revolucionários impulsos, teofilianos ou neoteofilianos. (…) a epopeia camoniana é, entre outras coisas, um genial manifesto, uma máquina de guerra coerente, e não um poema asséptico e intemporal dedicado à exaltação de um amor pátrio sem conteúdo histórico preciso. (…) Temos pois de nos resignar e de nos conformar com a ideia melancólica de que o Poema Nacional nos inculca como sua mais alta lição uma concepção idolátrica do amor pátrio? Que Camões, por excesso de paixão - em parte reverso da infelicidade dela - excesso que é impossível confundir pura e simplesmente com aquilo que se designa de patriotismo, hiperbolizou o amor pátrio é inegável. Que essa mitificação contribuiu - e continua contribuindo - mais do que tudo o resto para nos descentrar em relação a nós mesmos e nos instalar numa perspectiva autista de configuração esquizofrénica, também não parece poder pôr-se em dúvida. Camões conferiu-nos, colectivamente, uma existência epopeica e desta insolação sublime nunca mais nos curámos. O nosso caso é verdadeiramente único nos anais do Ocidente cristão. Nenhum inglês, alemão ou francês é solicitado a identificar-se idealmente com os heróis que os representam; (…) Todo o famigerado enigma da nossa originalidade histórica cabe no peito ilustre lusitano a que o verbo do poeta soube conferir foros de corpo místico nacional. Já é tempo de o decifrar, naquilo em que é decifrável, separando a luz que nele brilha da suspeita e nefasta treva de que o rodeiam aqueles que, lamentando não viver no tempo de Camões, desejariam que um Camões vivesse no tempo deles para lhes dourar o heroísmo anacrónico de que se alimentam.”

”(…) o ultranacionalismo retrospectivo e absurdo de uma aprovação e glorificação grotescas do que vária gente chama «lusitanidade» e outra, pior ainda, «portugalidade», e que são e serão a idolatria imbecil do que é português só porque é português.” (see Marcas de Lusotropicalismo no Marcelo)

Historicamente, a hipertrofia do sentimento nacional, tal como Os Lusíadas a configuraram, só se tornará grave e patológica à medida, ou nos momentos, em que a distância entre a nossa hora solar e a realidade decaída que a prolonga se acentuará. O que no Poema aparece já numa luz traumatizante para o futuro é sobretudo a nossa imagem no conjunto das dos outros povos. A topologia imaginária onde Camões nos situou era já na época perigosamente irrealista e fonte de irrealismo como o exterior e concludente Alcácer Quibir o mostraria (…)